História do Karate

Um Esboço do Karate (Karate Gaisetsu)
Por Sensei Chojun Miyagi
em 23 de março de 1934

Karate-do de Ryukyu

O objeto do karate-do é frequentemente mal interpretado por aqueles que assistem a demonstrações de quebra de tábuas ou tijolos. Isso não é karate-do. Em tempos de paz o karate-do deve ser seguido pelo seu caráter não-utilitário, assim como o treino da mente. Porém, em tempos de falta de lei o nosso corpo pode ser utilizado para vencer um adversário.

sub-arquipélago das Ilhas Ryukyu onde Okinawa é a ilha principal

É muito difícil verter em palavras o propósito e o verdadeiro significado do Do. Tal como outras formas de Budo, o seu significado profundo está para além das palavras escritas; a sua essência transcende uma simples descrição. A apresentação seguinte representa um caminho através do qual podemos abraçar o karate-do.

A Origem do Karate-do

É no kempo chinês (designação que pode ser grafada como Quanfa, Chuan-fa ou mesmo Kung Fu) que encontramos a fonte da qual o karate-do provém. Todavia, a efetiva evolução do kempo chinês permanece obscura devido à escassa documentação histórica que testemunhe o seu desenvolvimento.

Arte do Manual Bubishi

Uma teoria sugere que o kempo se desenvolveu de modo inerente com o desenvolvimento da humanidade no Oriente Médio ou Turquia desde os tempos antigos, progressivamente expandindo-se para a Índia e China. Outra teoria descreve o advento do kempo há cinco mil anos na China, no período do Imperador Amarelo.

O Imperador Amarelo, alcunha de Huang-Ti (huangdi), do século XXVII a.C.. É considerado por muitos o fundador da civilização chinesa, assim como artes chinesas, medicinais, escrita e combate.
Huang-Ti (ou Huangdi),O imperador Amarelo, do século XXVII a.C.

De qualquer modo, podemos ter apenas a certeza de que tal necessidade de cultivar capacidades defensivas, tenha resultado da animosidade que é inerente à condição humana.

Refletindo o seu temperamento instintivo, os mais antigos métodos de kempo chinês baseiam-se nos movimentos de luta de aves ou feras. Daí os nomes dos métodos individuais de luta que refletem a fonte da qual provêm. Como mero exemplo: estilo do tigre, estilo do leão, estilo do macaco, estilo do cão, e o estilo da garça.

Características distintivas (baseadas em diferenças geográficas, climáticas e sociais) levaram a que o kempo chinês se dividisse em duas facções separadas. Conhecidas como as escolas do Norte e do Sul, dividiram-se posteriormente nos sistemas internos e externos.

Os sistemas internos enfatizam a suavidade e a maleabilidade. As suas técnicas defensivas baseiam-se nas táticas evasivas e eram representativas do wudang quanfa (similar ao Taichi). Os estilos externos enfatizam sobretudo as técnicas baseadas na força física, e adequavam-se sobretudo às pessoas musculosas. As escolas externas, ou duras, radicam a sua origem no templo de Shaolin situado na região de Dengfeng, província de Henan, na China.

Templo Shaolin em Dengfeng na província de Henan, na China
Templo Shaolin em Dengfeng na província de Henan, na China

Mais tarde, na época das dinastias Tang (618 a 907 d.C.) e Song (960 a 1279 d.C.), uma série de heróis das artes marciais lograram sucesso em trazer fama às tradições de luta civis à medida que elas se destacaram na China. Porém, resta pouca documentação histórica que testemunhe o advento do kempo chinês nas ilhas de Ryukyu. Existe, todavia, uma miríade de suposições.

Fundamentalmente existem três teorias principais envolvendo o advento do kempo chinês nas Ryukyu.

A primeira é a Teoria das trinta e seis famílias de Kuninda;

Kuninda é a pronúncia nativa para o nome da vila de Kume, em Naha, onde em 1392 a China Ming estabeleceu um entreposto após ter celebrado um acordo com Chuzan (o mais poderoso dos três principados rivais no Reino de Ryukyu

a segunda é o fenômeno Oshima Hikki;

Refere-se à publicação Oshima Hikki, um compilado feito por um estudioso confucionista do século XVII, chamado Tobe Royen da prefeitura de Kochi em Shikoku. Comissionado para entrevistar e registrar os tesemunhos de passageiros e tripulação do “navio de tributos” de Ryukyu, que afastado da rota para Satsuma por um tufão quando transferia um “tesouro”, uma expressiva passagem fornece a primeira menção ao kempo chinês no Reino de Ryukyu. Descrevendo uma demosntração de artes marciais chinesas, Shiohira Pechin, o oficial responsável pela viagem, relembrou as suas recordações de Kusankun.

e a terceira de que as tradições de lutas chinesas foram importadas para o Reino de Ryukyu pouco depois do período Keicho.

O período Keicho é o tempo da história japonesa compreendida entre 22 de outubro de 1596 a 13 de julho de 1615. O Sensei Miyagi refere-se à subjugação do Reino de Ryukyu pelo samurai Satsuma em 1609. Tendo sido completamente desarmados, acredita-se que meios alternativos de manuitenção da lei e da defesa civil tenham sido cultivados devido à proibição de tal uso.


As Três Hipóteses

1. Kuninda

Em 1372, cerca de quatrto anos após as forças mongóis terem sucumbido às poderosas forças do império Ming (1368 – 1644), o imperador Shu Yuan Zhang enviou uma delegação especial a Chuzan (o mais poderoso dos três principados rivais de Okinawa) num esforço para negociar uma ligação entre as duas culturas.

Kume (Kuninda) em Naha, Okinawa.

Por volta de 1392 – no vigésimo quinto ano do imperador Zhu Yuan Zhang – o rei de Chuzan, Satto (1350 – 1395) ratificou a ligação com a China Ming e aprovou os planos para estabelecimento de uma missão chinesa a ser construída na área de Kuninda de Naha (atualmente a Vila de Kume). Este fenômeno cultural ficou conhecido como a teoria das trinta e seis famílias. Incluindo especialistas em política, educação, ocupacionais, crê-se que o quanfa foi inicialmente introduzido pelo pessoal de segurança destacado na missão.

2. O Oshima Hikki (Crônicas de Oshima)

Em 1792 um navio de tributo de Okinawa, a caminho de Satsuma (atual prefeitura de Kagoshima, ao sul da ilha de Kyushu) desviou-se para Tosa (antigo nome da prefeitura de Kochi em Shikoku, Japão). Um letrado confucionista chamado Tobe Royen foi comissionado pelo bakufu (governante militar) encarregado de registrar os testemunhos de passageiros e tripulação. A bordo estava um importante oficial de Ryukyu de nome Shiohira Pechin (título que designa os oficiais socialmente nobres, do Reino de Ryukyu. Seu prestígio equivalia ao de samurai), que forneceu um relato expressivo sobre as tradições de lutas chinesas no Reino de Ryukyu.

No terceiro volume da crônica de Tobe, Oshima Hikki, aparece durante o diálogo com Shiohira Pechin, o nome de Kusankun, que era perito em Kempo. Em conjunto com alguns dos seus discípulos, Kusankun viera para o Reino de Ryukyu onde se refere ao kempo como kumiai-jutsu (fontes alternativas sugerem que Kusankun viera para Okinawa com o Sapposhi do Rei Guan kui em 1756 – Sapposhi era o nome que se dava aos enviados dos imperadores chineses). Embora limitada, a hipótese de Oshima Hikki surge como o mais fiável documento relativo ao kempo no Reino de Ryukyu.

3. A subjugação de Satsuma

Após o 14º Keicho (1609, décimo quarto ano do Imperador Keicho) e quando o clã Stasuma já tinha desarmado o Reino de Ryukyu e proibido a posse de armas, crê-se que o Toudi (Sensei Miyagi utiliza os termos Toudi e Kempo com termos genéricos para designar a mesma arte) tenha sido importado (ou cultivado) intuitivamente. Todavia, a teoria de que o Kempo foi introduzido muito antes de 1609 e depois vigorosamente cultivado é uma muito mais realista suposição.


Para além destas três teorias principais, existem outras hipóteses menos populares. Todavia, a plausabilidade da sua autenticidade é pautada por testemunhos inconsistentes. Não obstante, não há dúvidas sobre o karate-do (em Okinawa) ter sido desenvolvido e melhorado desde há muito tempo até os dias presentes.

O Karate-do do Passado

As origens relativas ao termo Toudi nas ilhas de Ryukyu, permanecem pouco claras, Todavia, os estudos parecem indicar que há desenvolvimentos recentes. Antigamente o Toudi era apenas denominado como di ou te (um termo genérico que descreve as tradições de luta que foram trazidas da China para as Ryukyu). Naquele tempo, o Toudi (ou seja, o Te) desdobrava-se num ritual férreo de sigilo. Os katas eram apenas passados aos melhores discípulos. Os mestres que não fossem capazes de treinar discípulos merecedores de aprender seus katas, viam-se impossibilitados de transmitir a sua tradição única (ou seja seus katas), que apenas eles conheciam. Assim tal tradição desaparecia após a morte do mestre. Crê-se que muitas tradições teriam desaparecido devido a este intransigente constume ancestral.

Em meados do período Meiji (1868 – 1912), um tempo após o Japão ter transcendido as restrições do feudalismo, os rituais férreos de sigilo que anteriormente haviam escondido o karate-do, dissolveram-se com o crescimento do interesse público. Como resultado muitos peritos locais prepararam-se para os tempos de mudança em que o karate-do foi aceito por todos.

Trecho retirado do Livro:
Karate-do por Chojun Miyagi
introdução, tradução e notas de Humberto Nuno de Oliveira e Eduardo Cunha Lopes
Da tradução original de Hanshi Patrick NcCarthy